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Igbaki: Recombinar o destino, renascer - Marcelo Campos

  • Foto do escritor: Thiago Costa
    Thiago Costa
  • 1 de mai.
  • 4 min de leitura

Marcelo Campos

Curador-Chefe do Museu de Arte do Rio (MAR)

Professor Dr. UERJ-PPGAV


Texto escrito para exposição 

Igbaki ou o Assentamento da anunciação 

na Caixa Cultural em São Paulo


Oriki – Palavra que designa uma invocação aos deuses africanos na cultura nagô-iorubá. Nos orikis, ouvimos passagens míticas, da história dos deuses, sobretudo, momentos que definem suas personalidades.

Igbá – Cabaça que traz, simultaneamente, a forma do útero ancestral e a forma que deu origem ao mundo, ao globo terrestre.

Igbá Ori – Conjunto de elementos que determinam os assentamentos individuais e rememora a cabaça da criação do mundo, necessitando de culto e alimento para a manutenção do equilíbrio da cabeça (Ori) de cada indivíduo.


Em Igbaki, exposição individual do artista Thiago Costa, temos a combinação de palavras e sentidos resultantes das junções de assentamento (igba) e anunciação (ki).

Assentar, gesto de vida que se elabora ao cuidarmos de determinados elementos e signos que nos constituem enquanto filhos-de-santo; anunciar, exibir a consciência do propósito que trazemos ao nascer através de explicitações, falas e invocações às divindades que nos orientam.

Uma das mais corriqueiras imagens que encontramos ao sermos possibilitados a adentrar os quartos dos orixás, nos terreiros de candomblé, são ferramentas desenhadas, especificamente, para cada simbologia referente a determinados orixás.

O Brasil carrega a tradição dos ferreiros de orixá como relíquia secular. Tais ferramentas, geralmente, acompanham os Oborós, orixás masculinos, mantendo os assentamentos das santas mulheres Iyabás, em louças e porta-joias. Para cada deus, uma combinação figurativa, com cobras, lanças, espadas, arco e flecha. Jamais poderíamos aplicar a palavra “abstração” ao conjunto de peças escultóricas que, ao contrário, são pronunciatórias, ou seja, nunca deixam dúvidas sobre os orixás aos

quais estão destinadas. E são, também, alimentadas por invocações, pelo hálito, pelas palavras pronunciadas pelos sacerdotes.

Thiago Costa organiza ideias e pensamentos, a partir de variadas combinações e recombinações entre narrativas fílmicas, escultóricas, têxteis e poéticas. Aqui, a palavra “poética” se organiza de modo direto, com sua acepção primeira, ou seja, relativa ao próprio poema escrito. Talvez partam da poesia as múltiplas possibilidades combinatórias que a escultura de Thiago assim nos apresenta. 

Com elaborada pesquisa junto às narrativas afro-diaspóricas, o que poderia se tornar imagem, na produção do artista, passa a nos oferecer ações, tal qual acontece nas ampliadas destinações presentes nos nomes de folhas e ervas que guardam em sua nomeação os usos aos quais devemos vinculá-las. “Aterrar”,“anunciar”, “suspender”, “agir”, “afiar” aparecem, ora como verbo infinitivo, ora em outras conjugações, assim como acontece com as ervas “abre-caminho”, “vence-demanda”, “desata-nó”. 

Com isso, percebemos a relação entre o artista e seus caminhos de eleboração das anunciações invocatórias.

A obra de Thiago Costa encena a escultura como resultado apliado daquilo que poderíamos perceber, apenas, como um objeto. Nos gestos combinatórios, partem do artista as primeiras dúvidas e aberturas para que as hastes dos metais que constituem suas esculturas sejam recombinadas, em possibilidades sempre abertas a mudanças. Com isso, colocá-las no chão, nas paredes ou em bases nos aproxima do pensamento de um artista cujo jogo cênico se torna, talvez, mais importante do que a fixação a uma única queda. Sim, pois as esculturas em metal do artista esperam o instante da caída, palavra que comumente atribuímos ao jogo de búzio, para que possamos conviver com um dos muitos caminhos e destinos possíveis.

Analisar combinações e refazê-las nos encaminha a distintas tradições da história da arte e das próprias tradições africanas. Já se tornou corriqueiro associar a invenção da computação, por exemplo, à estrutura do sistema algorítmico ao que os africanos utilizam para as combinações dos jogos divinatórios. Tanto o Ifá, sistema combinatório constituído por desenhos geométricos que prenunciam 16 histórias (Itãs) desdobradas em 256 possibilidades de leitura, quanto o merin-dilogum, jogo com 16 búzios, mais difundido no Brasil, se utilizam das combinações algorítmicas, onde o zero e o um resultam das formas figurativas do búzio ou de frutos e favas secas das árvores. 

Um búzio fechado se assemelha a um risco, uma linha, tal qual na imagem do número um (1); um búzio aberto, um vazio, um oco ovalar, se assemelha à imagem do número zero (0). Ou seja, a figuração nas tradições africanas guarda implicações,simultaneamente, mágicas e matemáticas. Em outro sentido, poemas dadaístas, pertencentes às vanguardas do início do século XX, já recombinavam palavras aleatoriamente, naquilo que intelectuais brancos chamaram de “acaso”. 

Contudo, nas tradições africanas, o acaso não existe. A essa palavra atribuiríamos outras, como, ancestralidade ou mesmo, destino (odú). Quando dos jogos divinatórios são retiradas sentenças, a partir das histórias ancestrais (itãs), sabemos que a ordem é caminhar atento ao que se revelou, se anunciou como mensagem sagrada. Com isso, forma e espiritualidade se coadunam.

De tudo, sobrevém uma palavra: “encantamento”. O artista, ao pesquisar terreiros pelo Brasil, incluindo os de Terecô, em Codó, Maranhão, observa os amplos sentidos da anunciação, em momentos, onde a palavra também se torna um forte componente espiritual. Thiago afirma, “quando a gente anuncia um oriki (...) a palavra é um assentamento.” Já estamos no tempo de perceber relações invisíveis para além das prerrogativas formais. Dizer, sentir, ouvir, pressentir precisam ser incluídos nos verbos da arte. Tal ação fará com que nos reencontremos com nossos propósitos originais, propósitos que nos constituem enquanto ser e verbo, aterramento e flutuação, um sentido de unidade de múltiplas pertenças, capacitando-nos ao convívio familiar e social. Um menino criado na oficina da família Costa, vê seu pai e seu avô trabalharem no trato dos metais, serrar, perfurar, soldar. 

Agora, ele retorna e propõe uma certa desfuncionalização, deixar as hastes soltas, criar imagens, riscar o chão da oficina, como se incorporado por anunciações, imantado por pressentimentos, flechado por encantados. Mas, as escalas se alteram, as lições da arte se espelham em tradições banto e nagô, invocando caboclos e orixás. 

E, assim, cobras de duas cabeças, flechas,

facas e arco-íris sintetizam o inapreensível do tempo.

Está tudo aqui, me disse um líder indígena, ao olhar as esculturas de Thiago Costa. 

Naquele instante, entendi que estávamos diante da natureza, como se pudéssemos, através do metal, retornar à floresta.


 
 
 

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